Vladimiro Jorge Silva, numa análise clarividente sobre os problemas actuais das Farmácias:
- Tudo isto acontece porque o modelo farmacêutico português não tem viabilidade intrínseca: ao contrário das ideias que alguns tentaram fazer passar (com "estudos" científicos não escrutinados academicamente), a sociedade não reconhece ao papel do farmacêutico uma importância que valha cerca de 25% do PVP (sem IVA) dos medicamentos. E portanto quando é necessário cortar em algum lado, nada como iniciar essa tarefa pelas gorduras menos apetecíveis, deixando as greves de médicos e enfermeiros para segundas núpcias;
- Esta é uma questão que não se resolve com facilidade e que tem raízes muito mais profundas do que à primeira vista se possa pensar. Em primeiro lugar, a questão da necessidade: será que os farmacêuticos servem mesmo para alguma coisa? É que neste momento, pelo menos na dispensa de medicamentos sujeitos a receita médica, o seu papel pouco excede o de máquinas de vending de bata branca. A resposta é sim, claro que sim. É fundamental e verdadeiramente urgente a intervenção farmacêutica em áreas como a monitorização fármacoterapêutica dos doentes, verificação de interacções medicamentosas (no mesmo acto de prescrição, após consultas com médicos diferentes ou após a aquisição de medicamentos de venda livre), farmacovigilância, aconselhamento, participação em programas de saúde preventiva, promoção de terapêuticas medicamentosas custo-efectivas, lançamento de programas de cuidados farmacêuticos (como os que já existem para a asma e diabetes, por exemplo) e interligação com outros profissionais de saúde em termos de prestação de informação técnica especializada, acompanhamento de doentes (garantindo aspectos tão básicos e essenciais como a concordância e adesão à terapêutica através da disponibilização em permanência de ajuda especializada), gestão do risco clínico, renovação de receituário e revisão de medicação. Estas são, todas elas, áreas complexas e que actualmente estão a ser descuradas pelas farmácias e pelos farmacêuticos, não por falta de profissionalismo ou desconhecimento da realidade, mas simplesmente porque a pressão económica sobre as farmácias e a própria arquitectura do SNS não o permitem;
- Acresce referir que estão por contabilizar os custos associados às ineficiências causadas pela inexistência das medidas acima referidas e que seguramente ultrapassarão (em internamentos hospitalares, consumo de MCDTs e... novas aquisições de medicamentos!) largamente eventuais poupanças conseguidas pelo subfinanciamento de serviços farmacêuticos;
- As farmácias não são consideradas parte da rede de cuidados de saúde primários. Os farmacêuticos e médicos dos centros de saúde não se falam e desenvolveram relações de rivalidade e em certos casos mesmo completa aversão. Falta ao SNS uma cultura de colaboração conjunta e interligação entre os vários profissionais de saúde. As dificuldades de comunicação existentes limitam os benefícios de algumas iniciativas e são altamente prejudiciais aos doentes, quer em termos de saúde, quer sob o ponto de vista económico. Actualmente as equipas clínicas que actuam no SNS acabam por funcionar numa lógica de acumulação sequencial de actos individuais e não num contexto de decisão integrada e multidisciplinar. A falta de comunicação entre profissionais conduziu a uma segmentação do conhecimento e da respectiva intervenção, que em nada beneficia o doente, não contribui para optimizar recursos e até é susceptível de originar erros de medicação;
- As farmácias evoluíram num sentido perigoso e que em nada contribui para resolver este problema, antes pelo contrário. Os novos mini-mercados de saúde onde se faz um PSA, arranjam-se as unhas, experimentam-se sombras para os olhos, compram-se brinquedos de criança, sapatos ortopédicos e pulseiras electromagnéticas anti-stress servem para descredibilizar as instituições, consomem tempo a profissionais altamente qualificados e contribuem para que a percepção geral seja de que "se as farmácias já ganham dinheiro com tanta coisa, para quê continuar a existir uma margem na venda de medicamentos?";
- Por último, as faculdades de farmácia e a Ordem dos Farmacêuticos têm tido um papel absolutamente lamentável em todo este processo, negligenciando a criação de massa crítica e a inovação de novos modelos para a prestação de serviços farmacêuticos e aparecendo na praça pública apenas a defender interesses corporativistas e pouco aceitáveis aos olhos do resto da sociedade.
Os farmacêuticos são hoje uma profissão em vias de extinção.
A solução para inverter este caminho passa pela completa refundação do modelo farmacêutico português e pela demonstração ao governo das enormíssimas potencialidades económicas das alternativas. Os farmacêuticos devem ser pagos ao acto e não em função da margem de lucro. Devem existir prémios indexados a quotas orçamentais de poupança e monitorização efectiva de todo o processo. Imaginem o que seria a rede nacional de cuidados de saúde primários se lhe acrescentássemos 3000 entidades cuja função essencial fosse lutar pela adopção de medidas mais custo-efectivas!
As farmácias e os farmacêuticos são neste momento o maior desperdício do SNS, que financia todo um sector cujas capacidades seguidamente ignora.