Dr. João Cordeiro no
jornal i (sublinhados meus):
«De exemplo de prosperidade económica, as farmácias portuguesas foram tornadas pelos sucessivos governos num sector quase falido. Só uma forte organização associativa lhes permitirá resistir
As farmácias foram consideradas nas últimas décadas um exemplo de prosperidade económica, sustentabilidade financeira e qualidade de serviço.
Os inquéritos à opinião pública confirmavam regularmente este juízo das populações sobre as farmácias.
Nada parecia perturbar o sector, que se mostrava bem organizado e mobilizado em torno de projectos de modernização da actividade global da farmácia. O sector funcionava bem e a baixo custo.
As farmácias portuguesas são aquelas que têm a margem de distribuição mais baixa entre todos os países da União Europeia.
Entretanto, sem razões económicas ou sociais que o justificassem, a partir de 2005 foi desencadeado um ataque sistemático ao sector, com o óbvio propósito de o destruir.
Da liberalização da propriedade à autorização da venda de medicamentos fora das farmácias e à redução das margens, as medidas sucederam-se a um ritmo vertiginoso, evidenciando vontade de perseguir e pressa em agir.
Paralelamente, os medicamentos em ambulatório foram o alvo preferencial da política de austeridade do Ministério da Saúde.
As farmácias entraram rapidamente num ciclo inverso, em que a sua situação económica e financeira se foi degradando progressivamente, entre 2005 e 2010.
O sector de farmácias está hoje na mão da banca e dos fornecedores.
Crescem continuamente os incumprimentos de farmácias, os processos judiciais para cobrança de dívidas e as insolvências. De um clima de confiança passou-se a um clima de desconfiança.
A oferta de farmácias já é hoje superior à procura, o que era inimaginável há pouco tempo e é sempre um dos sinais mais preocupantes para qualquer sector de actividade.
A crise das finanças públicas repercutiu-se violentamente nas farmácias. Os governos não foram capazes de impor austeridade a si próprios e aos serviços do Estado. Só têm sido capazes de impor austeridade aos outros.
O Ministério da Saúde não foge à regra. A despesa pública com medicamentos nos hospitais do SNS continua a crescer e o Ministério da Saúde tem-se mostrado incapaz de controlar esse crescimento.
Inversamente, a despesa pública com medicamentos nas farmácias está a descer a um ritmo alucinante, pela via da redução dos preços e das comparticipações. Nos primeiros quatro meses de 2011, o mercado das farmácias reduziu 12% e a despesa do SNS em comparticipações reduziu 22%!
A equidade nos sacrifícios é por isso uma das questões fundamentais que o programa de resgate financeiro assinado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional coloca aos responsáveis políticos.
O Estado tem de dar o exemplo. As farmácias e os grossistas entraram já em situação de ruptura financeira e a própria indústria farmacêutica, apesar da sua maior capacidade económica e financeira, acabará também por sofrer as consequências.
É lamentável que tenhamos chegado a esta situação. Medidas indispensáveis foram inexplicavelmente adiadas. A prescrição por DCI e os genéricos são apenas dois exemplos.
Aquilo que os responsáveis políticos, durante duas décadas, não foram capazes de fazer por sua própria iniciativa tornou-se uma evidência indiscutível e por eles imediatamente aceite no momento em que essas medidas foram inscritas no documento da troika.
Perdemos anos e anos a adiar o inadiável. Somos todos responsáveis, mas o grau de responsabilidade não é o mesmo.
As farmácias têm reclamado sempre que a despesa pública seja adaptada às disponibilidades financeiras do Estado. Nunca nos opusemos a qualquer medida de contenção orçamental. Manter-nos-emos fiéis a estes princípios. Mas é preciso equidade.
As farmácias já estão a participar na recuperação do défice das contas públicas preconizado no acordo com a União Europeia e o FMI.
A redução das comparticipações (-22%) e do mercado das farmácias (-12%) está a ter um efeito devastador em todo o sector. É preciso moderar a dureza das medidas que estão a atingir as farmácias.
Todos os sectores da saúde têm de participar na redução da despesa. Particularmente, os hospitais do SNS, que consomem anualmente mais de mil milhões de euros em medicamentos, não podem ficar isentos do programa de redução da despesa com medicamentos.
As farmácias continuarão, entretanto, à procura da sua sobrevivência. Sabem agora como é importante uma forte organização associativa para reduzir o impacto da crise.
Acredito que ainda temos energias para resistir. E temos também obrigação de acreditar, embora isso seja cada vez mais difícil.»