«Estão todos errados! Só o Sr. Bastonário é que está certo, na sua singular parceria com a indústria farmacêutica»
Um artigo delicioso, no PÚBLICO, do Dr. João Cordeiro, Presidente da ANF, que mais uma vez demonstra ter muita mais categoria e inteligência que o dito "industrial do ano":
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O Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos tem evidenciado ao longo do seu mandato uma visão industrial da política do medicamento, contrária a uma visão científica, que nos parece ser a vocação natural do cargo para o qual foi eleito pelos seus pares. Na prescrição por marca comercial, nos preços, na dimensão das embalagens, na política de comparticipações, etc., as posições do Sr. Bastonário são sempre coincidentes com as das empresas produtoras de medicamentos. Aterrorizado com a ideia de perda de poder, com a entrada em vigor da prescrição obrigatória de medicamentos por DCI, cada vez mais próxima e cada vez mais inevitável, o Sr. Bastonário optou por viver encostado às posições da indústria farmacêutica.
Em vez de considerar a prescrição por DCI como uma evolução normal do exercício da medicina, mais consentânea com o estádio actual de desenvolvimento das sociedades e do Sistema de Saúde, considera-a inimiga da classe médica.
Em vez de considerar a DCI vantajosa para os doentes, por lhes facilitar o acesso a terapêuticas da mesma qualidade e a menor custo, considera-a inimiga dos doentes.
Em vez de se aliar aos farmacêuticos em defesa da DCI, considera-os inimigos da classe médica.
Para o Sr. Bastonário, estão todos errados, menos ele.
Estão errados os partidos políticos quando inscrevem a DCI nos seus programas eleitorais.
Estão errados os governos quando inscrevem a DCI nos seus programas de Governo.
Estão errados os países onde é obrigatória a prescrição por DCI.
Estão erradas as faculdades de Medicina e de Farmácia onde não se ensinam marcas comerciais, mas apenas princípios activos.
Estão errados os hospitais do SNS onde foi abandonada há décadas a prescrição por marca comercial.
Estão errados os doentes que querem ter o direito de opção por medicamentos iguais a preço mais baixo.
Está errado o Governo Regional da Madeira onde foi abandonada a prescrição por marca comercial e é obrigatória a prescrição por DCI.
Está errada a Assembleia da República que aprovou recentemente a prescrição obrigatória por DCI.
Estão todos errados! Só o Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos é que está certo, na sua singular parceria com a indústria farmacêutica em defesa da marca comercial.
Que interesses movem o Sr. Bastonário para defender com tanta persistência as marcas comerciais? As marcas não curam doenças. Ao defender as marcas comerciais e não os princípios activos, o Sr. Bastonário comporta-se como um comerciante de produtos de marca, coloca os aspectos científicos da terapêutica em segundo plano e funciona como câmara de eco das posições da indústria farmacêutica. A defesa da marca comercial, em nossa opinião, não prestigia os médicos e não acreditamos que eles se revejam na posição do seu bastonário. Quanto mais a classe médica se divorciar da marca comercial dos medicamentos, mais autoridade científica adquire sobre a sociedade em geral e os doentes em particular.
A marca comercial é o instrumento da indústria farmacêutica para proteger o mercado após a caducidade das patentes. Protegendo o mercado, protegem o preço, o que não interessa nem ao Estado, nem aos doentes. Compreende-se que a indústria farmacêutica defenda a marca comercial. É do seu interesse e essa posição é naturalmente legítima. O que já não se compreende é que o Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos tenha a mesma posição. Aliás, com a autoridade que lhe advém do cargo que exerce, é mais importante para a indústria farmacêutica que seja o Sr. Bastonário a defender esta posição do que ela própria.
Algum responsável da indústria farmacêutica vem a público defender a marca comercial? Nenhum. Nem precisam!
Há quem faça o trabalho por eles. Foi o que aconteceu, mais uma vez, recentemente, com a entrada em vigor da prescrição de medicamentos por DCI na Região Autónoma da Madeira. Não foi a indústria farmacêutica que reclamou contra a medida, foi de novo o Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos, que ameaçou mesmo que nunca mais certificaria congressos que se realizassem naquela região autónoma! E ameaçou, ainda, que não consentiria a abertura de mais vagas de internato médico naquela região!
Recusamo-nos a acreditar que a classe médica se reveja nesta retaliação do seu bastonário. Onde houver prescrição por marca comercial, o Sr. Bastonário certifica congressos; onde a prescrição for por substância activa, não certifica! Onde houver prescrição por marca comercial, o Sr. Bastonário aceita abrir novas vagas; onde a prescrição for por DCI, não aceita! É o “turismo médico” no seu apogeu, agora publicamente reconhecido e tutelado pelo próprio bastonário da Ordem dos Médicos. Será que não certifica congressos aqui ao lado, em Espanha, onde a prescrição é por DCI?
O Sr. Bastonário afirma que sem a marca comercial os doentes ficam na mão dos “comerciantes de medicamentos”, isto é, das farmácias. Este argumento ad terrorem pertence ao passado. São os doentes que reclamam a prescrição por DCI, porque já compreenderam que podem cumprir a mesma terapêutica por menos dinheiro. Só o Sr. Bastonário é que ainda não compreendeu isso.
Nos últimos dias, numa atitude de novo alinhamento com a indústria farmacêutica, foi a única voz que veio a público defender o fim do preço nas embalagens de medicamentos, contra o coro generalizado de protestos das associações de doentes e consumidores.
O Sr. Bastonário da Ordem dos Médicos tem sido um porta-voz qualificado da indústria farmacêutica.
Por isso mesmo, num ano em que o país atravessa tantas dificuldades económicas, merece o PRÉMIO DE INDUSTRIAL DO ANO.»