Do
Besugo, velho companheiro blogosférico, bom escritor, transmontano, médico ligado à oncologia, um excelente texto sobre o encerramento de unidades oncológicas e a "trasmontanidade":
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A morte por cancro é uma das inerências da longevidade. Isto é sabido. E morrer é uma merda.
Mas não me interessa agora nada disso.
Interessa-me que já vi morrer, que acompanhei na morte - depois de ter sido parceiro honesto, o mais honesto que consegui, de todo o impressionismo revoltado e terno de muitos fins de vida -, muitos homens e mulheres mais novos do que eu.
Tenho 49 anos. Sou ainda novo, talvez, para morrer. Mas que dizer deles e delas, de todos os que me ultrapassaram pela direita baixa sem quererem, antecipando-se-me no fim?
Que mais novos eram. Isso mesmo.
Da mesma maneira que não me orgulho nada de ser português - sou-o por acaso - gosto de o ser. Podia talvez não gostar, acredito que haja quem não goste. Eu, sem me orgulhar do que não fiz por ser, gosto. Os motivos são bastantes e todos discutíveis. São motivos, por definição.
Parei de vos tentar situar porque este texto tem uma má introdução, mas eu escrevo sempre à pressa e nunca sei como vai sair o que cismei escrever. O que, não desculpando nada, também não lhe acrescenta culpa.
Tenho acompanhado quase tudo o que se tem escrito sobre a Oncologia em Portugal. Também nos blogues. E tenho trabalhado nessa área nos últimos anos da minha vida, quase dezassete agora, se me remeter aos tempos do Porto e de Gaia. E de S. Miguel.
Agora estou, há mais de três lustros, em Trás-os-Montes. Nasci aqui, para aqui voltei. E Trás-os-Montes é uma Província pobre da província inteira.
Temos aqui cerca de 500.000 habitantes.
Temos neve, temos algumas más estradas e outras muito más. E algumas SCUTs que alguns nos querem fazer pagar, ainda por cima. Temos aldeias que ficam longe das sedes dos seus concelhos, suas primeiras mães, ficando muito mais longe, ainda, das sedes dos seus distritos.
A que distância ficarão, então, do litoral? A um mar inteiro?
Se alguém me ler e viver em Trás-os-Montes saberá entender que quando proponho paralelos entre a insularidade e a "trasmontanidade", me cubro da maior razão que pode haver, que é a que me vem de conhecer ambas as realidades e de ter sempre de ver de muito longe. E muito ao longe.
Acredito, claro, nas vantagens das estradas boas, que nos deixam ir mais depressa ter com o conforto. Mas acredito também na sua mistura, dessas estradas boas, com a maior vantagem de termos por perto coisas boas que também confortam.
Trás-os Montes, que trata doentes oncológicos há já muitos anos, que possui agora - luta árdua de muitas pessoas - alguma capacidade de atrair e de manter as competências "próprias" necessárias à complementaridade suplementar das competências "práticas" que já possuía (e que sempre possuiu) merece a oportunidade de tentar agora, ao menos, ter de Portugal o benefício da dúvida. Merece, com os meios que tem e que são hoje bem maiores que os que já tinha, não ver tombar sobre si a fúria centralizadora de quem não quer sair do litoral, onde passará, com o tempo e se o caminho da descentralização não se inverter, a ser excedentário (pelo menos em termos de serviço público, que os serviços privados florescerão sempre, pelo menos enquanto lhes não cobrarem o envio, para tratamento das complicações inerentes a qualquer acto médico, dos "seus" doentes para o sistema nacional de saúde).
Se a Braga, a Vila Real, a Viseu, não sei se a Bragança, a Évora, a Faro, for concedida a benesse de possuir equipamentos e meios humanos para que se possam ali fazer tratamentos de radioterapia, sendo que já ali se asseguram tratamentos de cirurgia e quimioterapia, como irão os IPOs e os hospitais do litoral justificar a concentração dos imensos meios "básicos" de que agora dispõem? Como se justificará, nesse futuro em tempos prometido e mesmo legislado (plano oncológico 2000-2005), a presença de meia centena de oncologistas médicos num qualquer IPO, se se legislar (mantendo directrizes anteriores) no sentido de esses Centros Altamente Especializados (que o são, não há aqui nenhuma ironia, os IPOs são isso mesmo e, até por isso, o que direi a seguir ganha reforço) passarem a tratar sobretudo as patologias oncológicas mais raras e mais diferenciadas? Terá o SNS a coragem de jogar a cartada que se impõe, há já muitos anos, de convidar esses oncologistas e radioterapeutas a optarem, de vez absoluta, em querendo permanecer no serviço público, por virem prestá-lo ( a esse público serviço) onde são precisos e onde se foram criando estruturas carentes apenas deles mesmos, que não as querem, ainda que com incentivos - sob pena de dele sairem, do sistema? E será o SNS capaz de lhes dizer, em eles optando por sair, "em eles se privatizando de vez absoluta", que poderão fazê-lo, claro está, desde que assumam as despesas dos seus tratamentos e das suas complicações (como faz o serviço público, pobres bestas que nós somos), em lugar de remeterem os seus doentes piorados e terminais à "vala comum e para eles, remetentes, gratuita" do sistema que ajudam a empobrecer e, algumas (talvez poucas, enfim) vezes, a minar, pelas ânsias de manterem um pé no "pai dos pobres" e outro na legítima (é legítima, está prevista na lei) ganhuça?
Deixai-me sair daqui, imediatamente, deste emaranhado antigo das minhas ideias, das crenças e querenças em que me criei e em que me criaram.
Deixai-me admitir, por ser verdade, que há nos IPOs e nos Hospitais Centrais de todos os litorais excelentes médicos, excelentes investigadores, muitíssimo boas pessoas. Sei isto muito bem por causas várias. Por exemplo, por com eles manter, há longos anos, relações (quase) próximas e de necessidade. Alguns dos meus melhores amigos e colegas estão lá. E são muito bons profissionais. Muito me têm ajudado: mas de longe, pena minha.
Acreditai. Que quero eu dizer com isto, no fundo, sem querer ofender ninguém nem solarinar pratas que não são minhas? Meu Deus, apenas isto: quero dizer que queria alguns deles cá. Para que ser de cá fosse, cada vez mais, como ser de lá.
Voltarei em breve à bola, de que muito gosto e que me permite sempre manter-me na trincheira baixa e calma - e aguada, sempre muito aguada - de que carece qualquer besugo.
(hesitei em deixar isto aqui, quero sossego; mas penso não estar, com isto, a ofender ninguém - mesmo que pense diferente)»