«Chegou-me hoje o casal, o filho e a nora, como se tivesse mesmo de vir. E o casal tinha de vir, pelos vistos. E eu sabia que o casal viria, coisas de quem já viu muitos lutos, lutos demais. A Aurora, mulher belíssima de oitenta anos, antiga professora, morreu-nos no fim de semana, como eu pressentira uns dias antes: internei-a já nas horas do fim, muito amarela e com dores por todo o corpo, o fígado muitíssimo destroçado pelas bolas loucas da desregulação fatal, sobrevivendo à morte apenas por acaso ou teimosia. Já lhe sobrevivia, aliás, à morte, há dois anos e meio. Na sexta feira, perante dores intensas que a faziam gritar, impunha-se a dignidade última da morfina. E assim se fez, iniciando-se a perfusão com a dose terapêutica mínima. Sossegou. Entrou num sono calmo. A filha, de olhos malignos como todos os olhos pequeninos das acusações medrosas - eu entendo o medo, até a acusação, mas nunca lidarei bem com a malignidade que vejo neste tipo de olhos, que são tantos e que apenas nos olham de soslaio - não queria a morfina na mãe. Cansado de lhe explicar que o meu fito, que devia ser o dela, era apenas que a mãe morresse sem dores, acedi: reduzi ainda mais a morfina, para dose ínfima e quase anedótica. Pensei que com a encefalopatia bastaria assim. E bastou. Morreu no fim de semana, sem dores e praticamente sem morfina. Morreu como eu gostava de morrer, aos oitenta anos, sem nenhuma dor, naquela "dormideira amarelada da bilirrubina". Hoje vieram. O casal. Não veio a dos olhos malignos, mas o outro filho. E a mulher dele. Os que eu esperava que viessem. Os que sempre ma trouxeram e levaram, ao longo deste longo tempo que referi. Sim, que eu sabia que só recentemente os cuidados a Aurora tinham passado para a outra filha, a dos olhos malignos, e para o respectivo genro. Costuma ser assim: no fim, quem esteve muito ausente costuma querer, imensamente, recomeços que não há. Veio, pois, o casal que vinha sempre, o que eu esperava. Agradeceram tudo mas queriam, ainda, uma resposta para uma pergunta: "era precisa, a morfina"? Eu disse que sim. Que era. E que foi. E, como sei que não foi a morfina que a levou de nós mas senti fundo que eles irão manter essa ideia, a ideia de que foi, e isto enquanto se lembrarem, despi-me - magoado - dos afectos que senti assim injustamente derrotados e fui, como há muito tempo já não era, apenas cortês e frio. Tive dores. Mas estas não se apagam com morfina, vai-as esbatendo - como pode - só o tempo.» In Gravidade Intermédia