Vladimiro Silva, no Diário de Coimbra de hoje, sobre o papel que os farmacêuticos poderiam desempenhar no SNS e os disparates, ziguezagues, e cobardias da política do medicamento do XVII Governo:
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Se analisarmos a actuação política dos últimos Ministros da Saúde em relação ao medicamento e às farmácias, verificamos que, já neste milénio, ocorreram os seguintes episódios: por duas vezes o preço dos medicamentos baixou 6%; as margens de lucro das farmácias foram reduzidas duas vezes, primeiro em 4,3% e depois em mais 4,7%; o preço de alguns medicamentos genéricos foi administrativamente baixado em escalões de 12%, 9% e 6% (segundo um complexo sistema progressivo relacionado com as respectivas quotas de mercado) e todos os genéricos viram o seu preço ser posteriormente diminuído em 30%; vários medicamentos passaram a ser vendidos fora das farmácias, por profissionais aos quais não era exigida qualquer qualificação especial (embora sob supervisão qualificada, mas não necessariamente por farmacêuticos); abriram centenas de novas farmácias; permitiu-se a propriedade de farmácias a não farmacêuticos; os concursos para atribuição de novas farmácias passaram a ser decididos por sorteio; passou a ser possível venderem-se medicamentos pela internet; não se implementou a prescrição por denominação comum internacional; manteve-se o contraditório conceito de “medicamento genérico de marca”; não se implementou a prescrição de medicamentos em unidose; não se completou a remodelação da legislação relativa a medicamentos manipulados; passou a ser legal vender medicamentos de uso veterinário fora das farmácias; o Plano Nacional de Saúde não faz qualquer referência aos serviços farmacêuticos; a reforma dos Cuidados de Saúde Primários não contempla os serviços farmacêuticos e o modo como estes se integram na arquitectura do SNS; foi assinado um protocolo entre o governo e uma associação de proprietários de farmácias que faz com que nestes estabelecimentos passe a ser possível a prestação de vários serviços não directamente ligados ao medicamento (como por exemplo a administração de injecções); na farmácia hospitalar são cada vez mais raros os farmacêuticos que actuam nos verdadeiros centros de decisão, sendo as suas funções desempenhadas por administradores hospitalares indiferenciados.
Estas medidas tão díspares na natureza e no tipo de legislação envolvida obedecem, no entanto, a uma matriz comum: há uma contínua e bastante consistente desconsideração da sociedade pelos serviços prestados pelos farmacêuticos. Para os diversos governos, o alvo foi sempre o mesmo na hora de cortar na despesa e mesmo as medidas mais óbvias e consensuais (como por exemplo a prescrição por denominação comum internacional) foram proteladas a favor de iniciativas legislativas que afectam mais directamente os farmacêuticos que outros profissionais. De facto, hoje é evidente que a sociedade em geral e os governos em particular têm sobre os serviços farmacêuticos uma opinião comum: são demasiado caros para o valor que proporcionam. E por isso devem ser o primeiro alvo de toda e qualquer iniciativa de restrição orçamental ou profissional.
Por outro lado, o governo continua a investir na formação de farmacêuticos: há cada vez mais licenciaturas em Ciências Farmacêuticas e cada uma delas tem cada vez mais alunos. Em Coimbra está mesmo a ser construída uma nova e bastante moderna Faculdade de Farmácia.
Ou seja, ao mesmo tempo que legisla de modo a que a intervenção farmacêutica e dos farmacêuticos no SNS seja cada vez menor, o Estado investe recursos públicos consideráveis na formação destes profissionais, o que é profundamente contraditório. Está pois na hora de se parar para pensar e enfrentar a realidade: a contratação de um indivíduo licenciado e altamente qualificado para o exercício de funções que podem ser desempenhadas por qualquer funcionário indiferenciado é um acto muito pouco custo-efectivo na perspectiva dos agentes económicos e perfeitamente irrelevante em termos do respectivo valor social e de Saúde Pública.
De facto, aos farmacêuticos deveria caber um papel de monitorização fármaco-terapêutica dos doentes, verificação de interacções medicamentosas, farmacovigilância, aconselhamento, participação em programas de saúde preventiva, promoção de terapêuticas medicamentosas custo-efectivas, lançamento de programas de cuidados farmacêuticos (como os que já existem para a asma e diabetes, por exemplo) e interligação com outros profissionais de saúde em termos de prestação de informação técnica especializada, acompanhamento de doentes, gestão do risco clínico, renovação de receituário e revisão de medicação. Falta ao SNS uma cultura de colaboração conjunta e interligação entre os vários profissionais de saúde. As dificuldades de comunicação existentes limitam os benefícios de algumas iniciativas e são altamente prejudiciais aos doentes, quer em termos de saúde, quer sob o ponto de vista económico. Actualmente as equipas clínicas que actuam no SNS acabam por funcionar numa lógica de acumulação sequencial de actos individuais e não num contexto de decisão integrada e multidisciplinar. A falta de comunicação entre profissionais conduziu a uma segmentação do conhecimento e da respectiva intervenção, que em nada beneficia o doente, não contribui para optimizar recursos e até é susceptível de originar erros de medicação.
O actual modelo farmacêutico português poderia ser melhorado e acredita-se que existe no SNS capacidade instalada para fazer muito mais e melhor.
Está, pois, na hora da sociedade dizer o que pretende dos farmacêuticos. E está também na hora de os farmacêuticos demonstrarem o que podem fazer pela sociedade.»
Sublinhados meus