O projecto Porto Feliz foi instituído pela Câmara Municipal do Porto em 2002, tendo como objectivo o combate à exclusão social. Envolve três vertentes principais: intervenção sócio-sanitária, reforço da segurança e sensibilização da opinião pública. Tem como objectivos específicos a diminuição das zonas de exclusão social (designadamente de arrumadores, de sem-abrigo e espaços socialmente degradados) e a restituição de qualidade de vida aos socialmente excluídos (toxicodependentes, delinquentes e marginais em geral.) A gestão corrente do projecto encontra-se alicerçada num conjunto de protocolos: com o Centro Hospitalar Conde Ferreira, hospitais Joaquim Urbano e de S. João, ARS/Norte e faculdades de Direito e Psicologia da UP.
Em Julho deste ano, quatro anos passados sobre o seu início, foram divulgados alguns resultados do Porto Feliz. Foram atendidas 2.113 pessoas (60% arrumadores), das quais 567 sujeitaram-se a tratamentos de recuperação da toxicodependência. Destes, 286 estavam em condições de trabalhar, dos quais 174 tinham inclusive entrado no mercado de trabalho. Durante a vigência do programa, foram gastos cerca de 7 milhões de euros (1,7 milhões por ano), sendo o seu custo suportado pela CMP (30%), ITD - Instituto da Droga e Toxicodependência (30%) e pela Segurança Social (40%).
Creio que o Porto Feliz é,
apenas, uma boa ideia. Para lá de toda a, evidente, vontade política. Escrevo «
apenas» não por considerar tratar-se de obra pequena. Pelo contrário, considero-a uma das mais grandiosas no panorama do nosso Poder Local. «
Apenas» é porque o programa presta serviços que já existiam, só que até aí dispersos por várias instituições. O projecto Porto Feliz é, então, o gestor operacional e integrante de serviços especializados de recuperação de toxicodependentes, que são prestados pelas entidades com quem a CMP mantém protocolos.
Os
pais deste projecto são o ex-vereador Paulo Morais e, naturalmente, o presidente do executivo, Rui Rio. O qual, já depois da saída do primeiro, insiste no Porto Feliz como a âncora do que considera ser a principal prioridade do seu mandato: a coesão social. Fenómeno, aparentemente, estranho num político social-democrata. Estranheza maior por se tratar da confessada primeira prioridade política do seu mandato. Adensada, finalmente, por ocorrer na segunda maior autarquia de Portugal. Não consta que isto ocorra lá fora. Que Barcelona, Marselha, Milão, Antuérpia, Roterdão, Frankfurt ou Manchester, para não ir mais longe, tenham idênticas prioridades. As grandes cidades preocupam-se com outros factores de atractividade, tendo em vista a promoção da sua própria competitividade. Combater a pobreza, ou a toxicodependência, ou qualquer outra maleita social não é, geralmente, um
desígnio autárquico. Desgraçadamente. Também daí o carácter diferenciador do projecto, que tem sido elogiado por essa
Europa fora, constando, inclusivè, que alguns países o quererão importar.
Analisados os resultados divulgados, verifica-se que dos arrumadores atendidos, 567 (45%) entraram em programas de desintoxicação. Destes, 286 encontravam-se em condições de trabalhar, sendo que 174 tinham entrado mesmo no mercado de trabalho. Desde logo, considero não se dever assumir como definitivos estes números. Infelizmente, os 23% de
recuperados, na sua maioria já
empregados, poderão não ser de confiança. Pelo contrário, os números deverão ser tão flutuantes quanto a população de toxicodependentes que visarão analisar. Tratam-se, maioritariamente, de pessoas que se iniciaram cedo no consumo de drogas, sem estudos ou qualquer formação técnica, desenraizadas, fora das, ou em conflito com as, suas famílias. Que competências profissionais poderão ter ou exercer no mercado de trabalho? Ou, pior ainda, simplesmente que trabalho poderão estas pessoas encontrar actualmente? Num País que apresenta taxas galopantes de desemprego, a que nem o sector público está imune? Por isso não me custa nada acreditar que a grande maioria dos 174
empregados em Julho já não o estejam agora. Por se tratar de empregos certamente sazonais, experimentais ou simplesmente vagas criadas pela própria operacionalidade do projecto no terreno. Ou seja, precários e nada efectivos. O que lamento. Primeiramente, pelas pessoas em causa e, depois, pelo Porto Feliz. Em ambos os casos, porque o esforço mereceria melhor recompensa. Com a agravante de, para os primeiros, ser muito mais difícil recuperar de um esforço assim, eventualmente, iludido.
O presidente da Câmara Municipal do Porto já anunciou que não irá desistir. Pelo contrário, considerou que a experiência dos primeiros quatro anos fortaleceu o projecto. E insiste que não se deve dar a esmola aos arrumadores, porque só assim será possível encaminhá-los para o Porto Feliz. Numa mostra de claro inconformismo. Curiosamente, um valor que desde sempre a Esquerda reivindicou como seu.
Ora, creio que o projecto Porto Feliz é tão
contra-natura quanto Rui Rio. Que não aparenta nada do
clássico político português. Que tem fama de «chato», casmurro até, que não é de facilidades, que faz finca-pé no que pensa ou acorda e age em conformidade com isso. Esperavam que quisesse sentar-se na tribuna das Antas, sonho de qualquer político, local ou nacional, mas não só não foi como virou costas aos apetecíveis votos azuis e brancos. Aos espanhóis do «El Corte Inglês», que há anos tencionavam instalar-se na Boavista, avisou que preferia que fossem para a Baixa, a necessitar de animação. Os espanhóis não gostaram da
escolha de Rui Rio e acabaram por plantar o
shopping na vizinha cidade presidida pelo seu arqui-rival político. A mesmíssima cidade de Gaia que se põe, duas vezes por ano, a rebentar foguetes-ao-desafio com o Porto. Que em vez de puxar os galões, tem preferido não mexer um cêntimo no orçamento para o foguetório. Já lhe chamaram, também, ditador. Porque lhe foram pedir um subsídio para fazer um filme sobre o Porto e exigiu, em troca, que não menorizassem a cidade.
Aqui d'El Rei, gritou a oposição, acusando-o de coarctar a «
liberdade de expressão» ao cineasta que lhe batera à porta. Do mesmo é acusado, também, por subsidiar jornais locais através de acordo escrito que inclui uma espécie de
penalty clause: quem disser mal do executivo perde o apoio. Ainda agora, enquanto escrevo este texto, mantém-se a contestação à sua decisão de passar para os privados a gestão do falido Rivoli. Os sitiados não só não concordam com a ideia, como não quiseram concorrer a ela. Pelo contrário, pretendem que Rio continue a pagar os
2,5 milhões de euros por ano para financiar um teatro
às moscas. «
Economista inculto» gritou-lhe há tempos um grupo de «intelectuais» tripeiros, onde se inclui Rosa Mota. Analisadas as contas do Teatro Municipal Rivoli, verifica-se que as receitas cobrem 6% dos custos, o que ilustra à evidência a inviabilidade da programação seguida. «Inculto», digo eu, será qualquer
intelectual que não enxergue esta evidência.
Volto ao Porto Feliz para recordar as críticas que lhe foram feitas na Assembleia da República, também pelo Bloco de Esquerda. As de sempre. Que aquele era um projecto sem futuro, que a existência de arrumadores, «
ainda», nas ruas,
evidenciaria. Ou seja, o Bloco advoga que a sua não eficácia, a 100%, é sinal de falhanço. Mais, considera que o flagelo da droga «
só» poderá ser combatido «
na origem» e não «
no destino» do problema. Por outras palavras, a velha máxima, nada inconformista, d'«
O melhor é estar quietinho». Do que não concordarão, certamente, os 286
recuperados e seus familiares. Ora, na minha, duplamente, anónima opinião, esta
crítica ilustrará muito da
lógica da política
à portuguesa. Que é o de sermos muito exigentes com a ousadia dos outros, mas perfeitamente indulgentes com a nossa resignação.
Concluo com o testemunho avulso de um
recuperado pelo Porto Feliz. «
... Atiraram-me a bóia, apanhei-a. Tenho emprego e sou gente por causa deste porto de abrigo.»
«Considera o que se diz e não te preocupes de saber quem o disse» (Tomás de Kempis, Imitação de Cristo, Capítulo 5, nº1)