
Sempre considerei estranho o modo como algumas pessoas discutem futebol. A verborreia que utilizam no relato das suas opiniões. A que chamam convicções. Quantas vezes perfeitamente irracionais. Pessoas, aparentemente, inteligentes, cultas e bem formadas. Que parecem perder tudo isso quando falam de futebol. E do que aí vêem. Permanentemente sentados nas bancadas da clubite mais aguda. Políticos, autarcas, jornalistas, artistas, cineastas, empresários, profissionais de todos os ofícios. E advogados. Muitos advogados. «
Pessoas que não sabem fazer nada, a não ser falar de tudo». Na definição de Belmiro de Azevedo.
Alguns justificam-se com o facto do futebol lhes ser, verdadeiramente, uma paixão. E, por isso mesmo, não racionalizada. Entusiasmam-se com os êxitos do seu clube. Exacerbadamente. Sem se importarem muito com a forma como as suas vitórias são obtidas. Mesmo se à custa de eventual fraude. Que se aprestam, desde logo, a evidenciar o contrário. Com a mesma veemência com que policiam todos os detalhes das suas derrotas. Que nunca são devidas à superioridade da equipa contrária. O adversário ganhou, já se sabe, por clara influência de factores extra-
jogo jogado. Os erros evidentes da arbitragem. As faltas não marcadas. Os penalties não assinalados. Os empurrões que ninguém viu. O golo que não foi validado. Quando a discussão não deriva para
fora das quatro linhas. O árbitro mal sorteado. A falta clara que só a TV evidencia. O juiz que escreveu mal o relatório. Uma inscrição feita fora de prazo. Um doping inesperado e, por isso, suspeito. Tudo obra do
Sistema. Que, como é sabido, é uma maquinação dos outros clubes. Nunca do nosso.
Também aqui, se perdoa tudo aos
nossos. O empurrão que, afinal, foi um
ligeiro encosto. A entorse que, obviamente, foi obra do
pé que caiu mal. A desculpa da violência sobre os adversários. Que, quando muito, foi só
virilidade. Ou a defesa do dirigente que liga ao árbitro na véspera do jogo. Certamente para desejar
boa viagem. Pelo contrário, aos adversários, já se sabe, reconhecem-se todos os defeitos. Afinal, são eles que
andam a destruir o futebol. Ora julgo que será aqui, precisamente, que começa a corrupção. Ao aceitar-se que uma mesma acção possa ter, sempre, dois significados. Que um mesmo
lance possa ter duas
leituras. A isto chamo corrupção mental. Que estará na antecâmara de qualquer
outra corrupção.
Em Inglaterra, como noutros locais, as pessoas vivem o futebol
dentro dos estádios. Enquanto decorrem os jogos. Vibram com o que lá se passa. No chamado
rectângulo de jogo. Cantam, berram, aplaudem. Quantas vezes embalados pela bebida. Mas, depois do apito final,
finish.
Next game?! Em Portugal, no entanto, o verdadeiro jogo começa a seguir. Nos inúmeros programas e fóruns. Na televisão, na rádio, nos jornais. Onde a animação chega a ser maior do que em muitos estádios de futebol. Por causa da famosa e imprescindível
dissecação do jogo. Como se fora um País de médicos-legistas.
O jogo de futebol é, então, como que desembrulhado. Despido da sua carga lúdica. Passando a ser mostrado numa outra perspectiva. A dos comentaristas. Sem qualquer
enfiamento da jogada. Sem
triangulações de bola. Sem
criação de espaços abertos. Sem
pressão alta sobre a defesa contrária. Sequer, sem
pontapés da linha de cabeceira. Até, sem golos. Sem sal, portanto. Tudo isto discorrido sem qualquer esforço. Sem a libertação de uma só pinga de suor. No final, cumprimentam-se todos, como nos jogos. Que o
fair-play vem sempre depois. Às vezes, até dão voltas ao estúdio. Satisfeitos, concerteza, com os comentários que produziram. E, porventura, com o serviço prestado. A assistência, essa, certamente também agradada. Com a legendagem dos jogos que acabaram de lhe fazer.
O interessante de tudo isto é que desconfio que esta gente nem gosta de futebol. E que utilizam estes programas e fóruns no mero intuito da subida ao palco. Do poder. Da fama. Da notoriedade, enfim. Cada um destes comentadores sabe que é um potencial presidente de Câmara. Ou que se arrisca a ministro. Um deles iniciou, assim, o percurso que o levaria a chefe do Governo. Não raras vezes, alguns mostram desconhecer as próprias regras do jogo. Talvez porque o descobriram já tarde. Mas entusiasmam-se à mesma. Porque é isso que se espera deles. Que aparentem ser pessoas comuns. Que se entusiasmam, berram, barafustam. Como todos os demais. Os espectadores. Os quais se revêem nos comentários. Vindos, afinal, de gente que se mostra igual.
«
Considera o que se diz e não te preocupes de saber quem o disse» (Tomás de Kempis, Imitação de Cristo, Capítulo 5, nº1)