O Corporate Governance, ou governação societária, é um sistema que visa a melhoria da gestão das empresas. Latu sensu, das organizações. Assenta em diversas práticas, que ilustram regras e procedimentos de gestão, visando tornar mais transparente e, portanto, mais eficiente, todo o processo empresarial de tomada de decisão. Parte do princípio de que uma cultura de boas práticas reforça a fiabilidade das organizações. Dos seus modelos de gestão e, fundamentalmente, da informação que prestam. A todos os interessados. Accionistas, fornecedores, clientes e empregados.
Parte-se, assim, do princípio que este «manual de boas práticas» visa tornar as sociedades (mais) transparentes. Socialmente (mais) responsáveis. A sua prática, continuada, gera (mais) valor acrescentado nas empresas e contribuiu para a (maior) competitividade e transparência dos mercados. A inobservância de tudo isto levou, nos últimos anos, muita gente à ruína. Desde logo, os muitos milhares de pequenos accionistas que confiaram na informação difundida por organizações até aí muito louváveis. Da francesa Vivendi-Universal, até às norte-americanas Enron, Worldcom e Tyco.
Em termos muito simples, um bom sistema de Corporate Governance deverá assentar nos seguintes quatro pilares. 1) Equidade: tratamento equitativo e igualdade de oportunidades para accionistas e investidores; 2) Transparência: permanente divulgação de informação financeira, operacional e relativa à estrutura proprietária; 3) Avaliação: monitorização e acompanhamento da acção dos órgãos de gestão; 4) Responsabilidade Social: respeito pela legislação aplicável e auto-regulação através das melhores práticas na orientação para os accionistas.
Há, como sempre nestas coisas, quem tenha as suas reservas e contraponha que isto é utilizado pelas empresas e outras organizações como um mero exercício de cosmética. O que não haverá dúvida, creio, é de que a sua implementação é um desafio à qualidade moral dos executivos. Para que tornem verdadeiramente efectivas estas práticas no universo das organizações que comandam.
Creio que esta é uma «doutrina» que estará nos antípodas das preocupações de qualquer «organização» autárquica em Portugal. E não devia. Há aqui conceitos que assentam como uma luva nas obrigações que qualquer município deveria mostrar perante a comunidade que representa. Como o da Responsabilidade Social. O assumir de que é nos munícipes que os executivos camarários encontram a razão para a sua existência. Tal como a legitimidade para exercerem o seu poder. E tudo isto sai reforçado se pensarmos que os munícipes são, simultaneamente, «accionistas» e «clientes» das «organizações» camarárias.
Proponho, num mero exercício de Verão, uma breve comparação dos procedimentos autárquicos à luz das «boas práticas» do Corporate Governance. Para isso, tomo a liberdade de tomar como exemplo alguns dos «procedimentos» do actual executivo poveiro. Os dados aqui expostos são os que têm sido noticiados na imprensa.
1) Equidade de tratamento na vereação e igualdade de oportunidades entre os munícipes. Aos três vereadores da oposição não foram atribuídos quaisquer pelouros. Ou seja, uma parte significativa dos munícipes (33%) não está representada no executivo camarário. O relacionamento entre executivo e oposição é, cada vez mais, de quase terrorismo. E não apenas verbal. Há agendamento de propostas, pela oposição, que são retiradas pelo presidente do executivo. Há um excesso de livre arbítrio, com a complacência do Estatuto da Oposição. Que é inócuo. Quanto a igualdade de oportunidades, estamos conversados. Há um rol de decisões acumuladas nada transparentes. A mais recente foi a dos familiares que monopolizaram a entrada nos quadros da câmara. E cuja jurisprudência deu direito, já, a repetição na junta de freguesia da Estela. O que mais espanta nisto tudo é que ninguém considera ter de se explicar aos munícipes.
2) Transparência na divulgação da informação financeira e operacional. Também não será aqui que o actual executivo camarário tem a sua «boa» prática. Concedo até que, internamente, alguém faça contas, mas elas não são, quase nunca, divulgadas. A grande maioria das decisões divulgadas não tem um conteúdo financeiro. Uma questão premente na actualidade. Alguém mediu o custo de oportunidade do novo parque da Avª Mouzinho quando comparado, por exemplo, com o do imprescindível e tantas vezes anunciado exutor submarino? A mesma questão serve para a anunciada renovação da Praça do Almada. Se há estudos precisos, façam o favor de os divulgar. Acreditem que os munícipes sabem um pouco mais do que deitar uns papelinhos, de tempos a tempos, nas urnas!
3) Avaliação e policiamento da acção dos órgãos de gestão. Haverá, concerteza, controlos a cargo do Estado Central. Que é assumido necessitarem de clara modernização, de pessoal e de meios. Terão de ser, desejavelmente, mais céleres e, logo, mais eficientes. A prática tem mostrado que a relação dos serviços camarários com outros organismos de controlo é conflituosa. Os municípios estão cada vez mais irmanados das mesmas práticas. Prova de que a diversidade política autárquica se esbateu. Já ninguém se lembra, agora, de quem «inventou» as empresas municipais. Sabe-se é que passaram a proliferar pelo País. Tal como as rotundas. Numa mostra de que as autarquias se constituíram num dos maiores lobbies da política em Portugal. Em termos de controlo interno, duvida-se naturalmente da liberdade e da independência de qualquer serviço camarário para actuar. Não conheço nenhum caso de denúncia por esta via. Há uma excessiva promiscuidade entre a vereação em exercício e os funcionários municipais. Passou a copiar-se o «modelo» do que ocorre no Poder Central. Onde são tomados lugares de administração no Estado logo após passagem pelo Governo. Cada vez mais uma espécie de barriga-de-aluguer para o funcionalismo público de alta gama.
4) Responsabilidade Social e respeito pela Lei e pelos interesses dos munícipes. A legislação que habita os gabinetes camarários é um pântano que alimenta todo o tipo de burocratas. Como sempre, com interpretações muito pouco consensuais. Há quem diga que é isso mesmo a burocracia. Já no que tem a ver com a orientação da acção para o munícipe, depende do que mais interessa a cada momento. Apenas dois exemplos recentes. 1º) Perante a evidência da existência de salmonelas no mar da Póvoa do Turismo, decidiu-se «não alarmar» os banhistas. E divulgar umas análises negativas «da câmara municipal». Que ninguém percebe porque são feitas. Quando, afinal, a competência é da Delegação de Saúde. Caso para os concessionários da praia passarem também a fazer as suas? No futuro, cada banhista com o seu kit pessoal? Já para não falar do espectáculo-gaffe que foi a conferência de imprensa da CM para justificar a origem da coisa. A atirar as culpas para o vizinho pela ausência da ETAR que ambos prometem há anos. 2º) Servem-se animações nocturnas no centro da Póvoa do Lazer, com aparente excesso de sound-bytes à mistura. Os moradores das redondezas protestam junto da CM. Desconhece-se se na qualidade de promotora do evento ou na de zeladora da Lei do Ruído. Aparece o vice-presidente do executivo a convidar os munícipes a saírem das fronteiras da cidade. Ora isto faz lembrar o que nalguns políticos sul-americanos se chama «justicialismo».
Em conclusão, muito caminho haverá ainda a percorrer para que o Corporate Governance se transforme numa verdadeira cartilha de boas práticas do poder autárquico em Portugal. Muito embora faça parte do Programa Eleitoral do XVII Governo Constitucional. O que não haverá dúvidas é de que a apregoada legitimidade eleitoral dos executivos autárquicos tem servido de capa de misericórdia a muito desvario por esse País fora. As cartilhas, por enquanto, são outras. Qualquer que seja a cor que tragam nas capas.
«Considera o que se diz e não te preocupes de saber quem o disse» (Tomás de Kempis, Imitação de Cristo, Capítulo 5, nº1)