Um dia destes escrevi, aqui, um texto em que tive que ordenar a mim mesmo para parar, senão ficaria toda a noite a ditar aos meus dedos, como se um espírito cochichasse ao ouvido de um médium, ou seriam vários espíritos, como quando se comem cerejas, umas atrás de outras, sempre umas encadeadas nas outras, aliás como tudo na vida, a vida é assim complexa, mais ainda que o pensamento, resolvi hoje experimentar se os espíritos conseguem ditar-me palavras, o Fernando Pessoa tinha uns espíritos óptimos, tinha vários, todos bons, onde andarão agora os espíritos do Pessoa, todos temos os nossos, cada um os seus, são eles que nos animam o pensamento quando estamos numa bicha de repartição pública ou num funeral, quando o nosso cérebro entra numa espécie de hibernação e é tomado de assalto por alguém ou alguéns que nos fazem vaguear, é como um motor, não pode deixar de trabalhar senão depois não pega, não arranca, devíamos ter um sistema de registo automático desses devaneios do pensar, julgo que consigo escrever durante uma noite inteira, penso melhor quando estou cansado, lá está, sem domínio nem ordem de raciocínio, aposto que nesta altura já ninguém me está a ler, com os espíritos tomando o leme, em consumo baixo de energia, nas noites de insónia tenho ideias que me parecem excelentes, depois no dia a seguir ou já não me lembro ou parecem-me perfeitamente absurdas, mas em tantas luzes que me passam pela cabeça, algumas haverá que valham a pena um minuto de atenção, estou convencido que numa noite de insónias conseguia escrever, com ajuda de alguém, com certeza, que não sei quem nem quero saber, infinitamente, enquanto durasse pelo menos, tive já, quando novo, no primeiro dia em que me incumbiram da tarefa de dar um curso de Cabos, em Estremoz, convencido que estava da minha condição física e da minha capacidade para correr em passo de trote a bater com o pé esquerdo ora sim ora não, que conseguiria extenuar os meus instruendos futuros Cabos, toda a gente deve ser assim, toda a gente deve conseguir escrever até que o dedo mindinho fique comprometido por artroses, basta deixar fluir o pensamento, o problema está em conseguir essa descontracção, uma variante de transe, planifiquei mal o circuito e na parte final, não foi propriamente na parte final, foi mais aí pela metade, os Cabos estavam ainda frescos como alfaces e eu já ofegava como um sedento no deserto, a língua de cortiça e as botas a pesarem como chumbo, as borboletas de noite são estúpidas volteiam e revolteiam à volta da luz, a Agrotis puta tem um nome muito feio, ainda não percebi o que levou o Lineu a chamar-lhes, não sei se foi ele ou um seu discípulo, uma coisa tão feia, talvez porque elas saltitem de sítio em sítio, sem nunca se fixarem, elas as borboletas, rapidamente como se comandadas, também, por um espírito demente, que adianta andar de Ferrari se quando ficamos doentes ou feridos somos transportados numa ambulância de 1981, saltitamos como uma puta, Agrotis, perseguindo a luz, uns mais depressa, outros mais devagar, e quase sempre saímos com as asas chamuscadas, que adianta usar uma gravata de nó grosso, vêem-se muitas nas estações de serviço, nas Antuãs, param na Antuã de Aveiras, na Antuã de Pombal, adoramos Antuãs, não deve haver outro povo que adore tanto parar nas Antuãs todas de um percurso, lá encontram-se amigos, principalmente nas casas de banho, também não estou a escrever para que me leiam, apenas não me apetece dormir, fazem-se namoros e os rapazes engravatados como gravatas de nós grossos, dominam, mesmo ao Domingo, um dia destes, não faltará muito, na Antuã de Antuã realizar-se-ão convenções de empresas onde todos vestirão gravatas de nó grosso e cores garridas, onde serão apresentados objectivos e prémios, o primeiro deles será um jantar mensal numa Antuã à escolha do vencedor, foi dos maiores vexames da minha vida, os Cabos a chegarem ao quartel à minha frente e eu com a boca aberta como um peixe, tenho pensado em comprar um aquário de água salgada, pelo menos poupava nos peixes, apanhava-os nas pocinhas da praia, a Agrotis puta também é feia, não é só o nome, é toda feia, ainda há pouco me apeteceu esmagar uma, com o tacão do sapato, deve ser assim no Médio Oriente, não gosto de Fernando Pessoa, nunca me esforcei muito por gostar, Psiquiatria é uma especialidade interessante, uma coisa me iguala aos artistas Portugueses, estou-me nas tintas para o pública,
escrevo para mim, e ainda tenho a vantagem de não precisar de subsídios, pelo menos enquanto não se pagar no blogger, Psiquiatria, ramo esquizofrenia, nunca mais tive autoridade sobre os Cabos, hoje será o dia, pressinto em que nunca mais terei autoridade sobre os dedos, nem que venda a alma ao diabo, as guerras religiosas causam-me espanto, há vinte anos nunca adivinharia que pela religião se mata e se morre no século XXI, ainda me lembro da série Espaço 1999 e de 1999 ser um data distante, quando somos crianças, ou mesmo adolescentes, um homem de 40 anos é um velho, e se calhar é mesmo, as crianças não mentem, e quase sempre têm razão, a lição dos Cabos foi difícil de tomar mas tem-me servido de âncora, Jorge Mário não podemos ser humildes demais, disse-me muitas vezes o meu pai, mas os Cabos ensinaram-me que não devemos pensar que conseguimos correr até sempre, mais vale fazer planos mais rasteiros, muitas pessoas confundem o meu nome, uns chamam-me Mário outros Jorge mas poucos sabem que me chamo Jorge Mário, como Jorge Mário Pedro Vargas Vargas Llosa, ele é conhecido sem o Jorge e sem o Pedro, só em Coimbra me chamaram Mário, como Mário de Sá Carneiro, ainda hoje alguns me chamam, como o Feliz que tem Farmácia numa aldeia de Rio Maior e semeia cabaças para dar aos amigos, quando lá passamos a caminho de Lisboa, nesse aspecto sou um traidor, gosto mais de Lisboa do que do Porto, Lisboa é uma cidade bonita, tem um clima excelente, das pessoas já não gosto tanto, não se podem fazer generalizações sobre conjuntos de pessoas, nem sequer sobre uma pessoa só, ninguém é todo feio ou todo mau ou todo falso, mas aqui já não sou traidor, gosto mais dos Tripeiros do que dos Alfacinhas, o que fará as borboletas como a Agrotis puta a borboletar à volta da luz, será ânsia de vida, duplicar o tempo de vida, vivendo sempre de dia, no fundo mesmo os animais mais primitivos estão convencidos que conseguem ludibriar a mãe natureza, mas não conseguem, nem nós conseguimos, ela é que é dócil e indulgente e deixa-nos pensar que sim, que podemos mudar o curso à vida, numa insónia o fenómeno deve ser parecido, não queremos que o dia acabe assim, aquando ainda há tanto que podia ser feito, inconscientemente queremos, numa insónia, fazer mais do que nos é permitido pelas limitações da nossa natureza, nos e-mails de gente que me conhecem mal nota-se um certo desconforto em chamarem-me Jorge ou em me chamarem Mário, tanto me faz, estou habituado a que me troquem o nome, Peliteiro, já deu origem a todo o tipo de enganos, dantes adormecia sempre a ler, agora é mais difícil, Jorge Luís também me agrada, talvez consiga alguém a deixar-me ser padrinho de uma criança que se chame, ou a que chamarei, se me deixarem, Jorge Luís, como o Borges, que morreu cego, não tenho muitos afilhados, o meu padrinho, Mário é que tem, quase não há família lá na aldeia que não o tenha como padrinho, também gosto de ler na Missa, em casamentos e baptizados, deve ser difícil escrever um livro estando cego, gosto de fazer uma pose solene, mas os que me conhecem sabem que por dentro me estou a rir, não por desrespeito, nem sei explicar porque gosto de ler em baptizados e casamentos, o Luís de Camões escreveu os Lusíadas sem computador, deve ser mais difícil que um cego, hoje, ditar um livro, o Fernando Pessoa, com aquela figurinha desprezível não me faz acreditar que tenha sido ele a escrever poesia tão reconhecida e apreciada, por certo em que o etanol teria algum poder de atracção mediúnica, há pessoas que se gostam de ouvir, sente-se muito nos locutores de rádio e nos políticos, mas também nos taxistas ou até nas costureiras, há borboletas bonitas e há as feias, nem sempre quem fala melhor é quem consegue fazer melhor, depende, tudo depende.