A minha especialidade eram os grilos. Não havia grilo por mais manhoso, por mais cauteloso ou medroso que se me escapasse. Tinha um método bem elaborado, tinha jeito, paciência, como um predador, lento na preparação da investida mas rapidíssimo no salto final. Apanhei centenas de grilos e ainda vendi alguns, trocados pelos cromos da bola ou de uns rebuçados Vieira. Também tive uma criação de rãs e saramelas, num baldão azul enorme, de tintos para os farrapos. Água onde houvesse saramelas podia e devia beber-se, era pura, sem caganatos, nem ovas de mosquito; metia nojo beber água com saramelas, aquele bicho viscoso, pintalgado de amarelo, parecia um bicho morto-vivo; mas água com saramelas realmente sabia bem, parecia mais fresquinha no verão, era límpida, bom às vezes era esverdeada, do lodo, mas lodo não é veneno e o que não mata engorda. O que não matava mas quase, tantas eram as dores de barriga e as convulsões produtivas do intestino, era a fruta que roubávamos por esses quintais adentro; os lavradores metiam-lhe um sulfato qualquer, talvez, ou então eram os excessos, quilos de uvas americanas, misturadas com pêssegos ou maçãs; noutras vezes eram melões, de casca de carvalho - esses davam direito, volta e meia, a tiros de caçadeira - devorados às toneladas, numa festa de gula; e as cerejas, lá bem no alto, mesmo na ponta daquele raminho, a uns bons 6 metros de altura, sabiam tão bem, madurinhas, picadas pelos pássaros, e nós a ver o mundo lá de cima, grande, verde, bonito, sempre alerta não fosse o dono aparecer à sacholada e os rafeiros a ferrar os tornozelos. Tornozelos ou joelhos aleijados mas que tinham que chegar a casa sarados, com ar de coisa antiga, de ontem ou anteontem, nem senti, foi um raspão, curados com emplastros de terra preta, bem pretinha, húmus hemostático e cicatrizante, que tudo remediava num instante, menos a dor que se escondia, um moço nunca chora, uma cachopa também não, a marca é que ficaria para sempre ou até que outra lhe crescesse.
Nos ninhos já não tinha tanta arte. Cada um tinha o seu valor, badegos era nada, melro ou pisco já contava, cuco ou poupa ainda melhor. A minha coroa de glória foi um grande de pombo-bravo, num pinheiro fino e alto, tão alto como o céu, sem galhos atá mais de metade, cortados para lenha no Outono anterior. Quando dei com ele, nem sei se seria um ninho ou um novelo de bichos de pinheiro. Só de pensar em bichos de pinheiro ficava com a pele vermelha e uma comichão que alastrava, dos braços para o tronco, depois para o pescoço, para as orelhas, não se consegue parar de coçar. Horas e horas de vigia até chegar um dos pais-pombo - era um ninho, era de pombo, pombo-bravo!!! Fantástico, dei com um ninho de pombo-bravo! Horas e horas de vigia até o pombo-pai ou pombo-mãe abandonar o ninho. O pinheiro não era fácil. Não tinha galhos. Mudei de estratégia, trepei a um mais pequeno, e lá em cima, na ponta, aí a uns 4 metros, balancei e balancei e balancei outra vez até com uma das mãos conseguir agarrar um galho do pinheiro grande. Esses ramos altos são rijos, nunca quebram, bem aguentavam com o meu peso, 30 quilos talvez. Metia um bocado de medo estes trapezismos, mas um ninho de pombo-bravo valia a pena, grande feito a contar na escola amanhã. Trepando até bem no alto, lá cheguei ao ninho, lindo, forrado a penas brancas, com dois ovos, grandes, com umas pintas, nada como os de pombo-manso, deslavados. Confirmada a conquista, acompanhei o crescimento com a cautela e parcimónia suficiente para não excrementar os extremosos progenitores-pombos; uma ronda ao território todos os dia, no pico do calor, quando eles abalavam, sem algazarra, solenemente, pé ante pé; ninguém mais lá ia, aquilo era território meu, só meu. Às vezes não dominava a curiosidade e lá subia ao pinheiro alto, ver como corriam as coisas; vêr os meu pombinhos no dia em que picaram o ovo, um todo saído, o outro ainda no esforço do nascimento, quebrada uma lasca com a ponta da unha, para o ajudar. Um dia, os pombos já grandes, quase a voar - talvez amanhã já voassem, já me conheciam mas fugiam quando assomava no seu refúgio - levei-os para casa, e criei-os num gaiolão grande, tinha que ser grande, alimentados a grãos de arroz pouco cozidos em água limpa. Tinha que ser, separá-los dos pais, afinal também eram meus, e naquela altura não havia consciência ecológica e as crianças sempre foram, a seu modo, bastante cruéis, não distinguem bem o mal do bem; por outro lado tinha o corpo em carne viva, dos arranhões das trepadelas e de coçar as bolhas dos bichos dos pinheiros, tinha comichão até de noite, era insuportável.
Hoje numa escola de Vila das Aves o INEM montou, com aparato, um Hospital de campanha e vários alunos deram entrada em Hospitais da região, devido à urticária provocada pelo contacto com bichos dos pinheiros.
Mal está o Vale do Ave, o futuro é incerto, não tanto pela crise dos têxteis, que essa é ultrapassável, mas mais por uma geração criada na necessidade do INEM por causa de umas comichões...