Estacionei o Mercedes bem no centro do adro da Igreja. Já há algum tempo que não venho à Missa de Domingo. Mas volta e meia tem que ser; temos que ser vistos, senão somos esquecidos… O Presidente da junta é irmão do Presidente da Câmara e lá está, temos que fazer pela vida, reforçar velhos laços, trocar uns favores e umas influências.
Abri a porta devagarinho e lancei o primeiro pé para a lama do adro. Lentamente, com estilo, sapatos Italianos, luzidios.
Não devia ter vindo sózinho, as pessoas se calhar reparam, mas a Amélia está cada vez mais fechada em casa, lá com as telenovelas e o seu aquário. E o que pensará a Florbela, deve pensar muito em mim, com toda a certeza. Pensará? Claro que sim, não me quis como namorado, porque se julgava uma princesa e agora bem deve amargar. O meu Mercedes dá nas vistas e ela anda de Fiat Uno; o marido, também tinha a mania que era pipi, de boas famílias e grandes voos, e agora não passa de um bêbedo barrigudo à espera do próximo enfarte ou trombose. Estão bem um para o outro. Bem feito, há-de estar bem arrependida, dizia que eu não era para o nível dela, agora roi-te de inveja. Agora anda para aí a dizer mal de mim pelos cantos, sei eu, que eu sou vigarista, ganho dinheiro com golpes baixos e coisas que tal. Inveja, sei eu!
Lá vou eu pela Igreja dentro, as pessoas a olharem de soslaio e eu, com passo pausado como no dia do meu casamento – aprendi nos filmes. Estou a ficar vaidoso. Não, eles é que são uns miseráveis, para aqui perdidos no meio da serra, nunca arriscaram nada, nunca ganharam nada, a mesma vidinha dos pais e dos avôs. Eu não. Dei no duro, emigrei, sujeitei-me a tudo, engoli muitos sapos e, claro, tenho olho. Olho para o negócio, o dinheirinho vem ter comigo, cresce devagarinho, amontoa-se com o tempo. Se tivesse nascido uns furos acima podia ter muito mais, podia ser um grande industrial com Comenda e tudo, estou mesmo a imaginar como poderia multiplicar uma fortuna, por dois, por quatro, por oito. Os meus filhos é que podem fazer isso. Se saírem a mim, de certeza que vão ser gente importante, escusam de vir a Missas para conseguir posição para umas adjudicações de umas estradecas. O mundo pode ser deles, meu já não, falta-me a energia, o fulgor dos velhos tempos. Não que seja velho ou doente, mas não vale a pena tanta canseira, os tempos estão maus e agora jogo mais à defesa, não posso arriscar muito, tenho que conservar o que tenho, e se num golpe de azar perdia tudo? Isso é que me preocupa, começar tudo de novo, já não o conseguiria.
O Vigário da Paróquia é bom homem, nunca lhe dei nada. Também não precisará, é de família de lavradores ricos, deve ter recebido um bom quinhão nas partilhas, não precisa. Leva uma vida de pobre o desgraçado. Lá está ele a pregar para quase ninguém. Quem, aqui, lhe dará atenção, anos e anos a ouvir as mesmas preces, as mesmas rezas e orações, as pessoas cansam-se. Como pode um homem normal ser Padre nos dias de hoje? Será um homem normal o Vigário? Deve andar nos psiquiatras, é uma coisa que não percebo, a vida dos Padres. Este, tem um irmão juiz, lá por Lisboa ou Cacém, ou Almada – que aquilo para mim é tudo igual, cheio de pretos e drogados – com uma vida boa e animada, já vai na terceira mulher e já vendeu as terras todas que herdou aqui na parvónia. O nosso Vigário é um desgraçado, aqui enterrado com as velhas e os Terços, Missas de madrugada, Funerais à chuva, uma casa de pedra e lareira com mais de cem anos, uma sopeira velha e rabujenta. O que pode levar um homem a escolher esta vida, tendo alternativas? E sexo? Agora o problema não se põe, com a idade dele – digo eu – mas não há dúvida que é preciso ter “estômago”, principalmente agora, no tempo em que as mulheres são todas bonitas, saias curtas, umbigos à mostra, decotes e essas coisas. As mulheres agora são todas uma tentação, no meu tempo não era nada assim, será da minha idade? Por certo que não, as mulheres dantes não se cuidavam tanto, quem me dera ser novo agora… Mas como se pode ser Padre nos dias de hoje, e o dinheiro estará guardado num banco, terão dinheiro ou dão tudo para o Vaticano? Não estou a dar atenção nenhuma à homília, mas esta já ouvi muitas vezes. Pelo menos estou com um ar circunspecto aqui com as minhas congeminações, pareço um homem de respeito, mal sabem no que estou a pensar…
Curioso a D. Engrácia com aquela cestinha de esmolas. Há anos e anos que ela faz isto. Será que rouba parte das esmolas, não acredito. Mas não sei. Está quase cega e mal consegue andar, gordíssima, arrasta-se como uma foca, meio de lado, com aqueles chinelos de quarto raspados por baixo. Deixa cá ver a cestinha. Miseráveis, avarentos, só moedas pretas, quase todas de um e dois cêntimos, uma nota de vinte, aposto que é do presidente da junta. Por tudo e por nada se gastam cinquenta cêntimos ou um “ouro”, os arrumadores na Vila nem aceitam as pretas. Um “ouro” não dá para nada, dá para umas chicletes, uns pães, um furo na tasca, um café com gorjeta. Se fosse uma colecta para uma IPSS destas modernaças - deve ser cá cada bando de comedores nestas IPSS’s, todos a sacar para umas boas viagens e mordomias – ninguém se atreveria a dar moedas pretas, ou para os Bombeiros, ou para o futebol… Como é para a Igreja do Vigário todos abusam. Não se pode ser humilde demais Sr. Vigário! Ele mandará estes dinheiros para Roma, e esses também têm fama de afanar muito, de terem tesouros de valor incalculável arrecadados em séculos e séculos. Mas mesmo que seja para Roma, ou parte para Roma, para aqueles Cardeais com ar de investidores na Bolsa, temos que reconhecer que a Igreja tem um papel social importante. Ajuda muita gente por esse mundo for a. Mesmo aqui, em Portugal. Pode ou não gostar-se dos Padres e das Freiras, mas ninguém pode negar que eles fazem coisas que mais ninguém faz, o que seria do mundo sem Igreja. Fazem muito mais que o Estado, e nem se pode comparar com essas tais IP’s. Também há Padres maus, concerteza, são homens, mas no todo a Igreja é muito importante para os pobres e humilhados, para as criancinhas – sou muito sensível às crianças que padecem, que têm fome, que são orfãos.
Bom é a minha vez de meter umas moeditas na cesta da velha Engrácia, ela nem me conhece, nem me vê. Um dia destes venho cá, sózinho, e passo um cheque generoso ao Vigário. Ele não o vai meter na sua conta bancária, quase de cereteza que é bem empregue, e eu fico bem de consciência, comigo mesmo. E se vai parar a Roma? Não. Mesmo que vá, faz parte de uma percentagem de desvios que é natural que aconteça; algum mais ficará por cá, para ser bem aplicado, nem tudo se perderá! Quanto deixo na cesta? Vou deixar uma nota de vinte. Não, se o Presidente vê ainda diz ao irmão que estou rico, invejas. Vou deixar um “ouro” – é pouco. É muito, porque hei-de dar mais que os outros, se tenho algum é à custa do meu esforço e trabalho. Detesto estar indeciso, estava aqui tão sossegado até esta velha bruxa aparecer aqui, a arrastar-se como uma foca, ao meu lado. Fico nervoso quando estou como um tolo em cima da ponte. Vai. Agora. Já tenho o dia estragado, porcaria, parvalhão que eu sou, não devia ter vindo, que necessidade tinha eu de roubar a nota de vinte “ouros” ao Vigário?