Hoje, já ninguém anda à boleia.
Por um lado é mau; significa que o mundo está mais perigoso e menos solidário.
Por outro lado é bom; os viajantes, os jovens em particular, já não precisam de mendigar transporte, mesmo em deslocações de lazer.
Eu andei muito à boleia. Desde os últimos anos do liceu, na faculdade e na tropa. Recordo ainda muitas peripécias e histórias.
Também dei muitas boleias, quando comecei a conduzir. Depois fui ficando mais medroso, logo mais selectivo - se é que se pode seleccionar o perigo pelo aspecto de alguém (uma vez dei boleia a um rapaz com bom ar, que mal entrou no meu carro disse, sem niguém lhe perguntar nada: olhe eu saí agora da prisão de Paços de Ferreira, cumpri pena por tráfico de droga, e preciso de emagrecer 20 Kg; estou a pensar ficar um mês sem comer, a não ser laranjas, o que é que acha?
Lembrei-me de escrever sobre a minha larga experiência de boleias, quando aqui abordei o tema da atenção, como sendo o bem mais escasso dos nossos dias. Porque durante umas quatro horas senti que não existia para o mundo, senti-me um fantasma invisível, com necessidade de me beliscar para confirmar que estava mesmo ali e não vivia uma experiência extra-sensorial. Partilhada, por acaso, com o meu companheiro de jornada, que teve exactamente a mesma sensação.
Vou contar. Paciência. Eu e um amigo dos “Corsários das Ilhas” saímos de Coimbra logo pela manhã (11horas mais ou menos) de uma sexta-feira para virmos passar o fim de semana á terra.
Ele era um grande campião de boleias. A sua façanha mais conhecida ocorreu quando um dia numa saída de Madrid, se pôs á estrada com um cartaz tamanho A4 com a inscrição do nome da aldeia dele em Guimarães: “Ronfe”. Passou um camionista dos têxteis, que satisfeito por encontrar um conterrâneo tão afastado de casa, para além de lhe pagar o almoço e o jantar, o deixou mesmo á porta de casa.
É que tudo tem a sua arte, existe (ou existia) uma estratégia da boleia. Pode usar-se o polegar ou um cartaz; o objectivo do destino pode ser ambicioso ou cauteloso, ou seja utilizar as estradas principais ou fazer cidade a cidade; o cartaz pode ser generalista – “Braga” - ou apelar ao bairrismo – “Famalicão”. Convém não esquecer que dantes o país era muito maior: Lisboa era mesmo muito muito longe; e os condutores sabiam pouco de geografia: “Santarém é lá para baixo, depois de atravessar o Tejo”.
Bom, continuando, lá fizemos Coimbra – Anadia, depois Águeda, um trânsito caótico para atravessar as pontes, S. João da Madeira (aqui uma vez, numa segunda feira de manhã, cheio de malas com roupa, chouriços e presunto, apanhei uma boleia de mota, naquelas de 50cc muito velhas, com um capacete tipo penico e o senhor, simpático, ainda me convidou para um café e bagaço), até que chegamos ao Porto (uma vez vim a um Boavista-Académica em cima de um camião carregado de bananas verdes, eu e uma colega, debaixo do oleado e de uma chuva miudinha; o Major foi impecável, pagou o almoço a 70 estudantes e meteu-nos a todos lá dentro do estádio).
Lá fizemos uns quilómetros a pé, porque dentro das cidades é difícil a boleia, e colocamo-nos na saída para a Via Norte. Já eram umas 5 da tarde. Por sorte tinhamos comido uma sopa, no Pompeu dos frangos, que um dos nossos patrocinadores nos tinha oferecido. Azar, a concorrência era enorme, uma fila bem ordenada, por ordem de chegada; e muitos magalas, que tinham sempre mais saída.
E foi aí que aconteceu a dita sensação de não existência. Passaram duas, três, quatro horas, fez-se noite e toda a gente apanhou boleia. Nós não descolávamos. Usamos todas as tácticas, separámo-nos, escondemos as malas, desviámo-nos para o início da via, afastámo-nos, enfim, tudo! De início os carros ainda faziam aquele gesto mentiroso mas reconfortante, apontando com o indicador para baixo, em sinal de que iam para mesmo para ali a seguir.
Depois não. Nem nos viam, passavam a conversar, puxavam os óculos, olhavam para a esquerda e para a direita, ligavam o rádio. Ignoravam-nos completamente, a partir de dada altura, desaparecemos para o mundo.
Ainda optamos por fazer como a malta do râguebi que andava sempre a mostrar o rabo, por tudo e por nada, mas antes disso resolvemos sentar-nos.
Não valia a pena o esforço, iamos ficar ali para sempre, como numa espécie de magia negra, tinhamos sido transformados em pedras da valeta.
Ficamos sentados um bom pedaço, calados, já não nos viamos um aos outro. Geralmente vinhamos aos pares porque ensaiávamos teorias, filosofia “du café” (ainda não havia blogues), falávamos de política, namoradas, projectos para o futuro e esperanças, díziamos mal dos profes, ou seja, conversávamos, coisa para que hoje há pouco tempo. Mas a conversa esgotou-se.
A partir daí, hoje, não me lembro de mais nada. Mas cheguei a casa por certo, tarde mas cheguei.
Curioso como a memória apaga os maus momentos e deixa apenas as venturas.