Vamos fazer um suponhâmos (1):
Imaginemos um pelotão de soldados, sitiado numa trincheira, na frente de combate.
Espera-se uma voz de ordem para avançar em direcção às tropas inimigas. O território por onde se dará a progressão é fustigado por peças de artilharia pesada e ligeira, está completamente minado e armadilhado. O inimigo é bem treinado, bem preparado e armado, e são lendárias as carnificinas por eles praticadas. Adivinha-se que o número de baixas seja enorme.
O que fará o soldado, cada um dos soldados, ouvida a ordem - Em frente, ao ataque! -, levantar-se, deixar a segurança do esconderijo, e avançar para um destino que terá como provável desfecho a morte, a dor, a invalidez permanente, o horror?
Imaginemos nós que, de um momento para o outro, eramos transportados para um cenário de guerra semelhante, por exemplo, para a batalha de
La Lys, ao lado do
soldado Milhões. Tentemos isolar os valores e as motivações que nos fariam levantar, num ímpeto, da trincheira, e fazer parte daquele corpo, que em simultâneo avança para o perigo. Amor á pátria e sentimentos nacionalistas; conquista de terras, interesses económicos e saques; vingança, especialmente de irmãos sacrificados pelos inimigos; razões religiosas; culto da valentia, heroicidade, desprezo pelos fracos e covardes; espírito de grupo; inconsciência, indiferença, ou ausência de alternativa.
É um exercício de pensamento interessante.
Assim de repente, assim de repente, sentado na minha confortável cadeirinha, a bebericar um whisquezinho, e a ver o Fernando Rosas e o Nuno Rogeiro a dissertar sobre o fundamentalismo religioso no poder tirânico do Saddam, bem, acho que das duas uma: ou continuava a jogar à bisca dos três com o camarada do lado, ou levantava-me, num ímpeto, e desatava a correr para a retaguarda, desertava.
Mas agora, outra vez a sério. Da minha experiência militar, e embora tivesse chumbado no curso de oficiais milicianos da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém ? aposto que o Nuno Rogeiro, brilhante especialista em assuntos militares e geoestratégicos, nunca foi à tropa! ? julgo que a motivação será o resultado conjugado de factores de três ordens principais:
a) Motivos sociais: do género dos apontados anteriormente neste texto, altamente exacerbados e deformados pelos serviços de propaganda, pela cadeia de poder militar, pelos mitos, gurus e líderes do regime.
b) Motivos psicológicos: As organizações militares, baseadas em técnicas com experiência milenar, conseguem moldar a vontade e a personalidade dos seus efectivos, numa espécie de alienação colectiva (2), uma espécie de lavagem ao cérebro, que os torna obedientes, acéfalos, ignorantes, manietáveis como autómatos, frios e crueis.
c) Motivos físicos: O que se espera de um homem fisicamente esgotado, que não dorme há 48 horas, não dorme numa cama há meses ( o sono é terrível, deforma o pensamento, transforma-nos em zombies sem vontade ); subnutrido e desidratado; doente ( uma gastroenterite, uma conjuntivite, uma lombalgia, cãibras ); ferido ( feridas ligeiras, é certo, mas dolorosas e purulentas ); com frio ou calor; sujo; infestado por pulgas, carraças, piolhos e parasitas intestinais, mordido pelas ratazanas; num ambiente hostil e sujeito à adrenalina do medo?
É desta massa que se fazem os exércitos, tudo depende do equilíbrio das proporções correctas, ou como se diz na botica,
f.s.a., faça segundo a arte.
(1)
A expressão "vamos fazer um suponhâmos" foi captada num julgamento, onde um lavrador se defendia:
- Ó Senhora Doutora Juíza Dona Maria Manuela, vamos fazer aqui um suponhâmos,
- a Senhora Doutora Juíza Dona Maria Manuela, é uma vaca,
- andava a ruminar, sossegada, umas ervas à beira da estrada,
- vem a camioneta de carreira, e sem a Senhora Doutora Juíza Dona Maria Manuela fazer nada, arrrrebenta-lhe c'os cornos.
- A Senhora Doutora Juíza Dona Maria Manuela tem alguma culpa em ter os cornos grandes???
É claro que o lavrador perdeu a causa!
(2)
Uma vez, vinha eu no comboio militar Lisboa Porto de sexta á tarde - onde atingi a experiência transcendental de dormir em pé, solidamente amparado por uma horda compacta de mancebos barulhentos e mal cheirosos - e perto de mim dois grupos, um de recrutas "páras" e outro de comandos, elogiava o comportamento dos seus instrutores. Cada um deles, parecia delirar de satisfação com as provações físicas e as humilhações sofridas naquela semana, infligidas por uns energúmenos com patente. " O nosso tenente obrigou-nos a mergulhar a cabeça na imundícia da fossa do quartel; ele é o máximo, tem o curso de não sei quê, e esteve na legião estrangeira ". " O nosso capitão obrigou-nos a todos a dormir nus na parada e depois obrigou-nos, no pequeno almoço a comer gafanhotos e grilos; ele é mesmo bom, esteve na Guiné, e parece que matou mais de cinquenta turras ". Então, eu que já estava farto de ouvir aquela conversa, e a remoer os castigos e reparos que apanhei - " levante essa cabeçorra, instruendo Peliteiro, essa boina, parece a de um padeiro ", " instruendo Peliteiro, outra vez atrasado para a formatura, encha cem, hoje já não há pequeno almoço", " nunca vi ninguém com tão pouco jeito para a tropa, essas botas estão um nojo" - interpelei-os e disse: porque é que vocês ficam tão satisfeitos com as sacanices que vos fazem? Nada de especial, não queria ser ofensivo, só pedagógico. Ainda por cima, usava boina negra, como a da polícia militar. Foi uma confusão... O que vale é que enquanto esgrimia calmamente a minha argumentação, o Martins calcou o Silva, o Araújo - num solavanco do comboio - bateu com a cabeça na testa do Santos, eles deviam-me ter achado uma presa chata e sem interesse, desprezaram-me e envolveram-se numa alegre batalha de murros e cabeçadas, insultos e palavrões, entre boinas verdes e vermelhas, que durou até Campanhã.